17 de dez. de 2014

Sistema efetivo para aprender rapidamente a ler as notas.

Existem diversos métodos geralmente aceitáveis para aprender a ler, mas todos eles buscam mais do que nada superar o problema quase insolúvel da complexidade que representa a leitura da música. Ler cada nota requer considerar entre 4 a 7 elementos distintos, e isto se repete para os centos ou milhares de notas que uma partitura pode ter. E isso deve ser previsto o antes possível.

As soluções usuais consideram um aprendizado progressivo aprendendo primeiro as notas dentro do pentagrama, e sem acidentes, depois alguns poucos acidentes são introduzidos, mais tarde algumas linhas complementares (poucas, uma ou duas no máximo), etc. Pois isto é o que caracteriza a todas as músicas compostas para iniciantes além das lições de solfejo.

Uma forma assim como esta de introduzir aos alunos na leitura musical repercute na técnica, e não somente para tocar piano. Efetivamente, o iniciante em qualquer instrumento utiliza dessa forma somente o registro central, e por essa causa os movimentos resultam bastante restringidos. Também devemos considerar que a leitura dever-se ia associar à memória auditiva, e então as restrições de leitura representam também uma limitação para educar o ouvido.

O método que proponho a continuação como o mais eficaz é baseado na memória visual e as suas próprias características, ou seja:

 A retenção de uma imagem é diretamente proporcional à percepção de alguma ordenação peculiar naquilo que se enxerga.

Os exemplos seguintes são para piano, porque permitem mostrar a metodologia a seguir para instrumentos que utilizam mais de uma clave, mas isto se pode reduzir para o aprendizado da leitura em qualquer instrumento que utilize uma clave só.

A metodologia em geral consiste em memorizar determinados grupos de notas organizadas em forma tal que constituam uma imagem fácil de lembrar.

Primeiramente ensinamos ao aluno a identificar com facilidade os espaços de oitava que, entre todos, totalizam a extensão do instrumento. No caso do piano sempre se observa a perplexidade do aluno quando enxerga o conjunto enorme de 88 teclas entre brancas e pretas. O melhor é começar observando que o teclado se divide em grupos de 2 e 3 teclas pretas, e que esse agrupamento se repete. A continuação o aluno aprenderá os nomes das notas no teclado, antes de proceder pela leitura, começando pelo Dó (não é imprescindível que seja o Dó central) observando que é a tecla branca à esquerda do grupo de duas teclas pretas:

                                      


Ou seja, se pode apreciar que é uma imagem fácil de lembrar. A continuação o aluno identificará, por si mesmo e sem mais indicação, todos os DO que possa encontrar no teclado.

Para as notas seguintes se procederá visualizando ordenadamente assim:

MI – à direita do grupo de 2 teclas pretas.
RÉ – no meio do grupo de 2 teclas pretas.
FÁ – à esquerda do grupo de 3 teclas pretas.
SI – à direita do grupo de 3 teclas pretas.
SOL e LÁ – associam-se no meio do grupo de 3 teclas pretas: o SOL é a tecla seguinte à primeira das 3 pretas, e o LÁ é a seguinte à tecla central das 3 pretas.

Procederemos a identificar uma por uma cada nota, e em cada caso pediremos que o aluno identifique todas as que possa encontrar no teclado com igual nome, semelhantemente a como já fez com o DÓ.

O passo seguinte será que o aluno reconheça as notas em qualquer ordem e lugar, como por exemplo, um RÉ... um FÁ... um SI... um MI... etc., sempre em lugares diferentes do teclado.

Quando se perceba que o aluno já tem suficiente segurança para reconhecer as notas (usualmente todo o processo completo leva aproximadamente 15 minutos) lhe mostraremos a ordenação seqüencial “dó, ré, mi, fá, sol, lá, si” no teclado, coisa que reforçará definitivamente a visual da topografia periódica do teclado em grupos de duas e três teclas pretas com o Dó no início. Podemos ainda pedir que o aluno diga quantas notas pode contar entre um Dó de um grupo e o Dó do grupo seguinte, e assim, ele verá que são oito notas e explicaremos que essa distância, ou “intervalo”, se chama “oitava” porque, precisamente, se contam oito notas e isso se pode observar (literalmente: “enxergar”) para qualquer outra nota que seja.  Pedimos então que identifique as oitavas de ré, mi, fá, sol, lá e si.

Neste momento o aluno estará em condições de associar o teclado com a escrita. Segundo iremos observando, não se dá vantagem ao aprendizado de uma clave aprendendo-a primeiro que a outra, senão que as duas se aprendem ao mesmo tempo. O procedimento começa pela identificação de todas as oitavas de Dó na escrita partindo da imagem mais facilmente reconhecível, a do Dó central:

  

                         
Estas oitavas distribuídas em duas para cada mão são suficientes, pois por cima da mais aguda da mão direita, e por baixo da mais grave da mão esquerda, a identificação no teclado é obvia sem maior observação. E agora se pode passar a ensinar a identificação do resto das notas na escrita e também no teclado, sempre acudindo a imagens fáceis de lembrar e começando pelo grupo mais simples:


                                                               1° grupo:


Esta imagem corresponde à nota escrita na linha central do pentagrama e isso é o que se tem que observar e memorizar com o respectivo nome segundo seja a clave. É necessário que o aluno veja, também, onde é que essas notas se tocam no instrumento, e por isso foi que teve uma preparação prévia para reconhecer todos os DÓ, coisa que agora lhe permitirá saber em quais oitavas corresponderá tocar.

Quando este grupo estiver bem memorizado, com a respectiva identificação no teclado (isto leva normalmente poucos minutos) passaremos para o segundo grupo:


                                                           2° grupo:
 

 Neste caso a imagem é de notas escritas nos espaços centrais. Também se deverá mostrar onde é que essas notas se tocam no instrumento e pedir que o aluno as toque. A disposição em forma de acorde tem só uma finalidade visual e não supõe necessariamente serem tocadas como acorde.

Quando este grupo estiver bem memorizado, será momento de fazer o seguinte exercício de prática (ou qualquer outro semelhante) lendo e tocando:

                            


O passo seguinte será praticar os dois grupos juntos, ou seja:

                                              


Isto é, se fará uma prática com ambos os grupos mediante exercícios, como por exemplo, o seguinte (ou qualquer outro semelhante) sempre dizendo os nomes das notas e tocando-as no instrumento:

                            
Depois adicionamos mais um grupo, que mostrará as notas escritas nas linhas segunda e quarta, ou seja, a linha central fica entre as duas notas:

                                                            3° grupo:


Depois de serem memorizados os três grupos, ou seja:                            





se faz a prova de tocar, sempre dizendo os nomes das notas:

                                    


Resumindo tudo até aqui, se trata de ir adicionando novos grupos, um por um, além dos anteriormente memorizados, fazendo também uma prática de leitura que combine as notas de todos os grupos aprendidos e tocando tudo o que se lê. Tem-se observado que há alunos que não necessitam dizer em voz alta os nomes das notas, mas as tocam corretamente demonstrando assim que as reconhece bem. Nesses casos não precisa exigir que cada nota seja dita.

Desta forma continuamos adicionando grupos e o seguinte será:
                                                       
                                                        4° grupo:


Agora as notas ficam escritas nos dois espaços extremos do pentagrama. Com isto já teremos somado:




Desta forma progressiva o aluno memorizará, caso por caso, um conjunto de 12 grupos desde o primeiro até o último:

                               


Atingido este nível de identificação das notas será possível fazer práticas mediante exercícios como o seguinte, ou qualquer outro semelhante:


(As divisões se indicam somente para facilitar a execução técnica, mas se podem omitir. Os acordes, neste caso, se devem tocar).


Por causa da carência que comentávamos acerca da falta de partituras para iniciantes, que ofereçam maiores possibilidades de leitura, e enquanto a única opção seja utilizar as partituras existentes, será suficiente chegar até o grupo N° 9 do quadro geral acima, pois os três últimos grupos muito dificilmente terão aplicação salvo alguma rara exceção.

Até aqui temos visto a leitura direta, nota por nota. Porém, na prática musical será muito útil que o aluno saiba que nem sempre se lêem as notas uma por uma. É possível ler a relação que há entre as mesmas. Ou seja, por exemplo, as notas sol, lá, si, dó, ré, mi, fá... formam uma sequência de notas consecutivas escritas em linhas e espaços, também consecutivos, e é suficiente identificar somente a primeira nota (ponto de partida):

                        


Observe-se que a escrita excede em muito o âmbito abrangido pelos 12 grupos precedentes. Isto amplifica ainda mais o campo da leitura e o aluno conhece assim a utilidade de ler as notas em forma relativa, o qual facilita muito a leitura. Observando bem cada caso do exemplo acima, vemos que:

  • Os casos a e b são exemplos de leitura de notas ordenadas de maneira continuada, ascendendo ou descendendo, e será suficiente ler a nota inicial em cada caso e deduzir todas as seguintes durante a execução. A nota de chegada – a última da sequência – é de leitura obvia e pode ser desnecessário identificá-la pelo seu nome no momento de tocá-la, mas – e isto importa muito e é bom de ver já mesmo – se fosse o caso de querer memorizar um trecho semelhante, então sim será necessário identificar o nome da última nota (ou seja, para o caso da clave de Sol, no exemplo, a memorização nos dirá que a escala se inicia no Sol em 2ª linha e vai até um Si três oitavas acima).
  • O caso c apresenta notas ordenadas alternadamente e todas estão escritas nas linhas. Salvo isto, as observações são as mesmas que para os casos a e b.
  • O caso d é uma combinação, mas – observe-se – chegando ao fá na quinta linha poderia ser necessário ler independentemente o Si.

A maioria dos músicos lê desta forma. Não lêem todas as notas uma por uma pelos seus respectivos nomes, nem as lembram assim quando estão tocando sem partitura. Identificam somente as notas que são referências importantes, qual é a nota para começar ou terminar uma escala, ou um harpejo, e assim em qualquer trecho onde as notas estiverem escritas de forma continuada ou descontinuada incluindo eventualmente acordes.

Acidentes. Durante o desenvolvimento de toda a etapa de aprender as notas, se pôde demonstrar experimentalmente que é possível ensinar também o significado dos acidentes. Realmente não há motivo nenhum que seja de origem psicológica para proceder de outra forma, adiando seu conhecimento e suas aplicações, pois fazem parte da identificação exata dos sons e não são coisas separadas – inclusive auditivamente.

A forma mais efetiva de incorporar os acidentes durante o aprendizado da leitura é introduzir seu uso em seguida que o professor veja uma facilidade suficiente para identificar as notas a partir dos dois ou três primeiros grupos e não mais do que isso. Ou seja, num exercício como este:

                           


se o aluno for capaz de ler isto com facilidade, não terá dificuldade para ler e tocar isso mesmo, mas escrito desta outra forma:


O resultado geralmente é que a partir do terceiro ou quarto grupo do total de 12, os alunos já não precisam mais praticar primeiramente a leitura de notas naturais, e depois as notas alteradas, senão que eles podem praticar sem problemas a leitura direta das notas seja como for que elas se apresentarem escritas (alteradas ou não) na medida em que continuam aprendendo a identificar os nomes das notas em diferentes lugares do pentagrama e o instrumento. Ou seja, quando for memorizado qualquer grupo de notas (sem acidentes) o aluno poderá passar para exercícios de prática de leitura diretamente com notas alteradas, porque adquire muito rapidamente a capacidade para identificar, por exemplo, qualquer Ré sabendo se é sustenido ou bemol e pode tocá-lo sem falhar.

Ainda é possível dar mais um passo adiante e ensinar que os acidentes se podem escrever ao lado da clave no início do pentagrama. Mas aí, em geral, é bom parar. O tema dos acidentes que definem as tonalidades, evidentemente não é para as primeiras aulas. Será suficiente explicar que o conjunto de acidentes colocados junto à clave tem a função de evitar que as notas sejam alteradas uma por uma cada vez que aparecem escritas na partitura. É raro que neste momento algum aluno pergunte mais alguma coisa acerca dos acidentes.

Façamos agora uma avaliação de resultados confrontando-os com perspectivas que foram comprovadas em casos reais:

a)   Exemplos práticos para leitura, como os que exemplificamos, muito bem poderiam ser inventados pelo aluno e não pelo professor. Ou seja, se pode praticar a escrita e a leitura desenvolvendo ao mesmo tempo a criatividade.

b)   É possível utilizar desde o início uma extensão considerável do registro do instrumento (no piano seria praticamente todo o teclado). Isto contribui a acelerar o desenvolvimento da técnica sem depender da leitura. Mais uma vez cabe insistir numa carência de partituras ao respeito.

c)   O ouvido resulta bem mais ativo do que passivo, inclusive por causa de ter a chance de diferenciar as notas alteradas.

d)   Sendo que cada exemplo poderia ser inventado pelo próprio aluno, isto lhe levará com naturalidade a inventar também o ritmo, tocando. Normalmente o aluno quer escrever o que inventa, e eis aqui que o professor terá oportunidade de ensinar como se escreve uma partitura, embora seja elementaríssima. Não é raro que essas músicas tenham notas alteradas, talvez também ritmos incomuns, e isto significará uma valiosíssima oportunidade que o professor terá para conseguir que o aluno – evidentemente muito motivado – avance com passos rápidos na compreensão da teoria musical.

Faz falta dizer, contudo, que em relação à técnica, as vantagens que terminamos de sugerir não equivalem a forçar ao aluno exigindo-lhe habilidades prematuras que poderiam forçar os músculos e as articulações que estão recém começando um treinamento. Trata-se unicamente de salientar o que foi dito: a leitura não tem por que limitar o desenvolvimento da técnica.

Ocasionalmente tem-se objetado que esta forma de ensinar a ler as notas pode produzir uma confusão mental pela falta de evidência inicial da seqüência ordenada “dó ré mi fá sol lá si” para aprender os nomes das notas. Isto é discutível por várias razões que se podem ver estudando com atenção o que foi exposto em capítulos anteriores, mas há uma comprovação prática que muitos professores têm comprovado ao logo da sua carreira, e se trata do seguinte. São demasiados os casos de alunos iniciantes que para salvar a dificuldade de ler as notas lêem uma delas, e depois, para passar à seguinte, vão contando por ordem as que ficariam entre as duas – por exemplo, se as notas são Fá e Ré mais alto do que o Fá, o aluno lê o Fá e depois – às vezes colocando um dedo sobre o pentagrama – conta: sol, lá, si, dó... RE. Como isto nem sempre é visível (nem todos contam usando o dedo) a dificuldade se percebe somente pela grande demora entre nota e nota, e a origem se pode descobrir só perguntando para o aluno como é que ele faz para ler. Isto se pode dar em alunos de qualquer instrumento, mas no piano o problema pode ainda piorar se o aluno necessita contar também as teclas. Em conclusão, saber dizer a seqüência dó ré mi fá...(etc.), e saber identificar essa mesma ordenação, é tão só uma das muitas combinações de leitura, mas não lhe aporta nada à memória visual, e esse é o problema.


GBZ

Este artigo é cópia textual de um fragmento do capítulo 13 do livro MÉTODO CIENTÍFICO PARA O ENSINO DA MÚSICA.
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16 de nov. de 2014

A música nasceu tonal. Foi por acaso?

Os instrumentos mais antigos conhecidos até agora são flautas de osso, com furos colocados em forma tal que permitem tocar escalas. 
 

A flauta mais antiga conhecida foi descoberta no sudoeste da Alemanha e sua antiguidade é de entre 30.000 a 40.000 anos (inícios do Paleolítico Superior) e permite tocar sete notas. Vários outros exemplares tem sido descobertos também em outras partes da Europa, e também na Ásia e América. Esses instrumentos têm uma característica em comum: permitem tocar escalas em forma aproximadamente equivalente às notas dó-ré-mi-fá-sol-lá-(si), ou bem, escalas pentatônicas como fá-sol-lá-dó-ré ou semelhantes. Isto coloca uma interrogante muito interessante: Embora os humanos pré-históricos não conheceram a ciência da Acústica, eles construiram instrumentos destas características. Por quê?

Quanto sabemos sobre a percepção auditiva da música?
É sabido que o ouvido prefere as relações harmônicas simples e não as que são mais complexas. A relação mais simples é 2/1 (oitava) e quiçá por isso a polifonia mais rudimentar da história foi dobrar a melodia em oitavas paralelas. Na Idade Média o órgano (ou organum em latim) aceitou a relação 3/2, que é a quinta justa, e depois a inevitável quarta justa (4/3) que resulta de dividir desta forma o espaço de oitava em três vozes.
 
As terças formam uma relação algo mais complexa e isso poderia explicar por que levou séculos aceitar – paradoxalmente – o uso sistemático de um acorde que seria chamado “perfeito”, formado pelos harmônicos 4, 5 e 6 que são as relações mais simples possíveis para combinar três sons simultâneos sem dobrar nenhum e onde, por sua vez, os harmônicos gerados por cada um dos sons do acorde mantém a mesma relação com os demais harmônicos do mesmo acorde, reforçando-os. Não existe nenhuma outra combinação de sons capaz de cumprir esta condição. Por exemplo, o conhecidíssimo acorde DÓ-MI-SOL tem essa característica e se pode formar a partir de qualquer nota sem ser o DÓ. 

Este acorde chegaria a ser o alicerce da harmonia, até um ponto tal em que qualquer outra formação que não incluísse os seus sons devia ser “resolvida” - isto é, as notas cujas relações harmônicas fossem mais complexas deviam seguir um caminho direto para atingir as notas de um acorde perfeito.

Considerando tudo isto em torno à percepção auditiva e a preferência pelas relações harmônicas simples, temos uma explicação de como e por que se foi gestando a harmonia tonal tradicional, tal como a conhecemos. Dai surgiria a distinção entre consonâncias perfeitas, consonâncias imperfeitas e dissonâncias. 

Estatisticamente, o único que se pôde demonstrar até agora é que a maioria das pessoas percebe a simultaneidade de sons como progressivamente dissonante na medida em que a relação harmônica entre os sons vai sendo progressivamente mais complexa. E isto se comprova igualmente para os sons simultâneos e para a melodia. Isto envolve a sensação de agradável ou desagradável, mas até agora não existem demonstrações acerca de como, nem por que, para algumas pessoas a dissonância extrema pode se converter em agradável. Porém, além do que é meramente subjetivo, a verdade é que a harmonia foi evoluindo a partir da homofonia para uma polifonia de relações harmônicas extremamente simples, indo depois para um uso progressivo das dissonâncias, primeiramente como um meio auxiliar da expressão, mais tarde invocando razões teóricas, e finalmente se chegou ao uso da dissonância perpétua.

Contudo – e isto talvez seja crucial no tema – tal extremo não envolve necessariamente ao atonalismo, porque pode igualmente se dar na música tonal. Se bem a tonalidade se pode solidificar ainda mais usando dissonâncias – mediante o uso de acordes formados de quatro, cinco ou mais notas da escala – quando chegamos ao acorde de 13ª (dó-mi-sol-si-ré-fá-lá) é atingido o limite porque contém as sete notas da escala diatônica. Para superar esse limite é necessário acudir às modulações, e assim poder  dispor de uma maior quantidade de notas. E esse foi o caminho que, ao longo do tempo, terminaria levando para o dodecafonismo. Ou seja, se continuarmos adicionando terças a partir do LÁ, as próximas notas serao Dó#, Mi#, Sol#, Si#, Ré#... até chegar, finalmente, aos 12 sons da escala cromática, embora haja mais de 12 formas diferentes de escrever o resultado. E é claro, do ponto de vista tonal, que ali estão todos os sons disponíveis para todas as modulações imagináveis, e todos os acordes maiores e menores possíveis, aumentados e diminutos, os de sétima, nona, etc. Isto foi sustentado pelos músicos até o século XIX e por isso, inclusive as audácias de Wagner (e as de vários compositores no início do século XX) soam “tonais” apesar de tudo.

Significou isto uma ampliação da tonalidade?

De um ponto de vista pareceria que sim, pois o objetivo intrínseco para criar e impor a escala temperada não foi sair do sistema tonal, senão, pelo contrário, foi a solução para poder movimentar-se através de todas as escalas diatônicas dentro de um limite tão só razoável. Razoável, porque no cálculo matemático não existe um limite e a quantidade possível de escalas diatônicas, na entoação justa, tende ao infinito. E consequentemente, a quantidade de intervalos possíveis também é enorme. Não obstante, o que se passa por alto quando se fala de outras organizações de intervalos para formar acordes é que é verdade que qualquer acorde que for, sempre poderá ser reduzido a una superposição de terças, sem exceção. A tríade continua assim sempre presente a todo momento. Por isso a harmonia em quartas, só para dar um exemplo, que procura sair do esquema da tríade, se bem dá um som muito particular ao ouvido, não escapa da regra e continua-se no atoleiro:





 Trata-se de um acorde de onzena onde é omitida a nona (o Lá). O problema aqui seriam os acidentes, e além do fato de que a 4ª diminuta Fa#-Sib soa em realidade como uma terça maior no temperamento igual, a tonalidade (ou talvez bitonalidade) do acorde é baseada numa relação harmônica inexistente. Aproximada sim, mas não exata. Esse foi, e é, o grande erro do atonalismo. Poder-se-á dizer que a aproximação é suficiente na escala temperada, e a história da música tonal poderia sustentá-lo, mas uma harmonia estruturada sobre uma sequência de acordes deste tipo produzirá para a maioria das pessoas uma sensação auditiva caótica causada pelo uso indiscriminado da escala cromática temperada; por exemplo:






Essa sensação seria causada por uma falta de hábito? Talvez tudo dependeria de uma educação particular do ouvido? A questão não seria em realidade essa, senão outra: não há base de cálculo nenhuma para dar explicação acústica a formações como essa ou outras parecidas. Por isso, a música atonal soa “desorganizada”: na realidade não se organiza do ponto de vista da Acústica – que é a ciência na qual a música deve supostamente se fundamentar, por trabalhar precisamente com o som. Por mais cálculos matemáticos que se fizerem, o único que se conseguirá demonstrar será que numa sequência como a do exemplo não existe nenhuma relação harmônica nem sequer aproximadamente exata. E isto, em conjunto, é algo a considerar muito seriamente nesta discussão.


Existem novas perspectivas para a música tonal?
Se pensamos que isto seria possível, surgem imediatamente duas perguntas que pedem respostas. Qual será o papel que desempenhará a modulação, sem repetir o caminho que levou direto à escala de 12 sons como base única para compor? Que papel desempenhará a dissonância, sem ir novamente pelo caminho já gasto da dissonância perpétua? 
 
A teoria dos chamados “níveis de dissonância” (a sucessão de conglomerados sonoros de maior ou menor dissonância relativa – ou “densidade” cada um) que foi uma proposta feita inclusive pela música eletroacústica, é uma teoria de compromisso entre o clássico e o moderno, ou seja: no conceito clássico, esses “níveis”, ou “densidades”, eram em torno à tríade para “resolver” as dissonâncias em consonâncias, mas, no enfoque moderno do mesmo conceito, o uso da tríade chega a desaparecer completamente. Então, o que fazer do ponto de vista teórico para evitar repetir todos esses caminhos?
As respostas quiçá não estejam em aspectos meramente teóricos, mas antes bem no âmbito dos estilos de composição. Durante mais de vinte séculos, todas as mudanças havidas no uso da escala diatônica foram devidas a diferentes estilos de composição, segundo foram sendo as motivações estéticas, expressivas, e até filosóficas dos compositores. Depois, e só depois disso, e em cada etapa histórica, os teóricos musicais analisaram o que os compositores tinham feito e assim nasceram muitas regras.

Não façamos confusão entre as regras e as bases teóricas da música. A essência das regras da harmonia e o contraponto é, em grande medida, uma tendência a perpetuar tanto determinados estilos como maneiras de compor música. Isto explica por que diferem tanto entre si as etapas históricas onde houve uma reação contra caminhos considerados esgotados. Então, a cada reação muitas regras ficaram obsoletas. Por isso não é de mais insistir em que as regras são baseadas no que é de bom gosto para uma época, e não têm suporte num enfoque científico para aplicar as leis do som. 
 
Em todo este processo observam-se somente três patamares onde primeiro foi a teoria e depois a música, e foram: o próprio cálculo da escala diatônica (Pitágoras e Aristóxenes), depois o cálculo do temperamento igual, e, de última, as teorias a priori dos inícios do século vinte. Nos dois primeiros casos a validação esteve na ciência. Porém, no último caso houve pseudociência e tal é o pior problema de hoje, porque os estudantes e o público em geral escutam falar acerca de complicadas teorias que fundamentam a música contemporânea, e pensam que tudo isso pertence ao âmbito inacessível do mais alto saber científico. Assim, ninguém entende nada, mas se aplaude para não parecer ignorante. 
 
Retrocedamos mais uma vez até as origens remotas, ou seja: foi por acaso que já na pré-história havia uma base tonal nos instrumentos mais antigos? E mais tarde, também foi casual que a relação harmônica 3/2 (quinta justa) fosse o fundamento de toda a teoria? Por que não qualquer outro intervalo? Vale a pena reduzir tudo à expressão do axioma de Pitágoras:

Qualquer intervalo pode ser expressado como uma combinação de um número maior ou menor de quintas justas”


O axioma se cumpre para qualquer intervalo que seja. Por exemplo, -dó-sol-ré-lá-mi é uma combinação de cinco quintas justas, e isto faz que entre a primeira nota e a última da sequência se forme o intervalo fa-mi, que é uma “sétima maior”, mas também se pode reduzir a um meio tom invertindo a ordem (mi-fá), e assim temos o meio tom diatônico. Se a sequência de quintas justas é -do-sol-re-la-mi-si-fá#, temos a “oitava aumentada” entre o fá e o fá#, ou, invertendo o intervalo, temos o meio tom cromático. Todos os os intervalos surgem a partir do axioma pitagórico, sem exceção, e o cálculo matemático (ou seja, prescindindo de raciocinar mediante notas) também permite comprovar a mesma coisa. Quer dizer que o intervalo mais simples de todos (depois da oitava) pode ser gerador de um sistema harmônico complexo que é... tonal.
 
Aliás, o cálculo matemático pode comprovar ainda mais um fato, contrariamente a tudo quanto é acreditado: o meio tom cromático é um intervalo explicável mediante a tonalidade, não alheio à mesma, e a “enarmonia” não existe como tal e não importa quantas voltas se dê ao círculo de quintas. A enarmonia é somente um artifício da escrita para evitar a coma pitagórica e só isso. E a escrita cromática no pentagrama é somente um andaimagem lógico que permite o deslocamento de uma tonalidade para outra dispondo tão só de sete notas. Estes fatos foram demonstrados num dos meus artigos (em espanhol) http://eltamiz.com/elcedazo/2013/03/17/musica-y-ciencia-11-acerca-del-circulo-de-quintas/
 
Enquanto seja mantido um diatonismo, ou seja, os graus de maior ou menor afinidade entre as tonalidades usadas nas modulações, e enquanto isto mesmo se desenvolva em base aos únicos intervalos possíveis para as 7 notas de qualquer tonalidade, a música soará tonal e não atonal, tanto faz qualquer quantidade de acidentes cromáticos e enarmonias se utilizarem na escrita. Porém, ao contrário, se a escrita cromática deixa de ser o andaimagem e, em troca, funciona como base de uma livre escolha de intervalos de qualquer natureza em qualquer ordem, então temos uma música atonal (embora não necessariamente dodecafônica no sentido estrito de Schönberg). Este dualismo não marca uma “fronteira” - como tem sido nomeada – senão que é um limite matemático: dispõe-se de um conjunto de 12 elementos combináveis na música atonal, e de 12 possibilidades de combinar escalas de 7 sons na música tonal. O limite está ultimamente ali, sem importar a forma de escrever as notas usando acidentes.


E a seu jeito, cada compositor percebe esse limite.
O compositor atonal fica encapsulado em seus doze sons e as combinações possíveis começam a se parecer mais e mais umas às outras, por causa das próprias qualidades da teoria combinatória, e o ouvido tem a cada vez uma maior dificuldade em perceber a diferença entre uma combinação e quase qualquer outra. O resultado é que o atonalismo termina produzindo música cada vez mais parecida a outras músicas atonais anteriormente compostas. Em contrapartida, o compositor tonal percebe o mesmo problema e acha uma saída na politonalidade e a dissonância como formas de diferenciação, quando sente esgotadas as possibilidades do só recurso da modulação e ainda dos recursos da música modal. Os problemas do compositor contemporâneo definem-se justamente aí. 
 
E no âmbito estético acontece algo semelhante. Cada sistema teórico – tonalismo ou atonalismo – teve e tem suas próprias formas, muitas vezes incompatíveis, que vão desde o tratamento das melodias até a organização dos temas no discurso musical.
E na busca quase desesperada de encontrar uma saída para estes limites onde a música ficou presa, há infinidade de alternativas propostas que vão desde as possibilidades da música eletrônica para safar-se dos 12 sons da escala temperada, até o micro-tonalismo praticável em diferentes instrumentos – incluindo os de teclado – passando pelas mais diversas concepções filosóficas acerca da relação entre a música e o homem, a livre produção de sons mediante qualquer recurso imaginável, e... surpreendente!, uma tendência incipiente que busca um retorno à entoação justa das escalas diatônicas, ou seja, prescindindo do temperamento igual de 12 sons.

Porém...

Qual é realmente a “entoação justa” ?
Se em lugar da relação 3/2 para definir a quinta justa como base para calcular a escala diatônica e todos os intervalos dedutíveis, se em lugar dessa relação partimos da relação 2,996615/2 não se produz a diferença de uma “coma”. Como atingir esse resultado? Expliquei isto em outro dos meus artigos em El Cedazo, http://eltamiz.com/elcedazo/2012/11/04/musica-y-ciencia-8-el-gran-legado-musical-de-la-antigua-grecia-4/ Mantendo 2^7 correspondente a 7 oitavas, haveria que buscar uma relação r entre quintas tal que cumpra que r^12 = 2^7. Se forçarmos a que r fosse da forma (r = x/2) ficaria (x/2)^12 = 2^7, ou seja, simplificando, que x^12 = 2^19. Se obtemos agora o valor de x, que é a raiz duodécima de 2^19, isso dá 2,99661415 que é quase 3. Desta forma não se produz a diferença de uma coma quando o círculo de quintas se fecha alcançando a 7ª oitava. Além do mais, se pode afirmar sem temor de errar, que por perfeitíssimos que fossem os métodos de medição dos gregos do século VI A.C., eles não tinham condições de distinguir entre uma corda de longitude 3,000000 e outra de longitude 2,996614, já que a diferença é uma milésima parte (só nos dois ou três últimos séculos se pôde realizar a façanha de medir uma magnitude com tanta precisão), pelo que nem o haveriam percebido... Mas o resultado final é uma escala de 12 sons afinados exatamente igual aos da escala temperada atual calculada sobre a raiz 12 de 2.

O que isto coloca é nada menos que o seguinte: Estamos acostumados, desde há mais de dois milênios, a crer que a entoaçao justa da escala diatônica é exclusivamente a calculada pelos antigos gregos, logo passada para a notação moderna no pentagrama com notas alteradas, mas em realidade poderia ter sido suficiente partir de uma quinta cuja relação fosse 2,996615/2 para que todas as escalas fossem de entoaçao justa. E haver-se-iam poupado esforços centenários para achar a solução que evitasse a quinta do lobo, etc.

Sei que esta conclusão é difícil de assimilar, porque violenta um conceito muito enraizado. O que os músicos não entendem é que em Acústica não existem sons “alheios à tonalidade” e isso demonstrável mediante cálculo.

Ainda há muito por pesquisar acerca do que é a tonalidade e como é que o ouvido a percebe. Possivelmente ainda haja, consequentemente, muitos novos meios de expressão musical através da tonalidade, a serem descobertos pela inspiração dos compositores.

GBZ




17 de jun. de 2014

Clássico e popular


Ao decorrer das décadas existiram muitas denominações alternativas para a música clássica, por entender que o termo “clássico” é confuso e abrange muito mais do que o período histórico ao que faz alusão. O conceito de “clássico”, aliás, pode ser referido a algo excepcionalmente bom, que dá nome a uma época, a um templo grego ou romano, ou também a algo tradicional e conservador.  Quando usado para peças ou composições populares acrescentando-se que determinada canção “é um clássico", o termo sofre ainda mais variações, e em consequência, foram propostas algumas expressões tais como “música erudita”, “séria” ou “acadêmica” em substituição do termo “música clássica”.

É difícil dar uma denominação adequada por causa de muitos fatores. Aliás, também pode resultar um nome que favorece equívocos, pois dá a entender que o clássico não é popular e que, bem pelo contrário, é seleto, e isto significa que que fica longe do massivo e, consequentemente, não tem muito público.

Buscando uma forma de juntar tais conceitos poder-se-ia pensar numa forma de qualificar os tipos de música sem basear a definição no período histórico, senão em algo mais substancial. O popular e o clássico, atualmente, diferenciam-se em algo e valeria a pena estabelecer em quê.  Isto tem a ver com estilos, porém, mais concretamente, com tradições e técnicas. 

A técnica é aquilo que separa o modo de fazer música. Olhando mais de perto podemos ver que a música clássica acontece essencialmente ao vivo, no entanto a popular tem uma importante relação com a gravação e uma aparelhagem para recursos audiovisuais.

Porém, aprofundando mais um pouco, vemos que ambas compartilham alguns aspectos e por isso é comum que a música clássica seja gravada e transmitida, e que a música popular seja tocada ao vivo. Sendo assim, esta não pode ser uma diferença fundamental e devemos analisar outras.

Devemos ver como é que se compõe a música: a música clássica se escreve em partituras e a popular raras vezes. Mesmo havendo muitos músicos populares que leem e escrevem partituras, e têm uma formação e trajetória acadêmicas, a diferença resulta determinante porque uma boa parte do processo criativo da música popular é transmitido fundamentalmente através da memorização, a gravação e os registros de áudio, no entanto a música clássica é transmitida só através da leitura como condição para executá-la e também para gravá-la.

Estas diferenças têm a ver com a forma como a música se compõe. O compositor de música popular  pode escrever seu tema em partituras, mas o ensaiará e tocará fundamentalmente de ouvido, ou às vezes também, em colaboração coletiva onde cada integrante vai aportando um pouco à criação original. Ao contrário, o compositor clássico escreve praticamente tudo sem omitir detalhes e estes fazem  parte de toda a obra. E se bem se pode dizer que a partitura não é tudo, e que o trabalho do intérprete é ré-criar a obra, entendê-la em forma nova e diferenciada, o mais determinante é que tanto o compositor como os intérpretes trabalham com papel, no entanto na tradição popular se faz através da memorização. Ambas as formas têm suas vantagens e desvantagens; o que está escrito é limitado quanto ao que se pode fixar num papel, e o popular é complexo em relação ao que se pode criar. Mas o escrito, sendo por sua vez simples, é possível de transmitir e eternizar com maior fidelidade, porque a escrita leva cada detalhe até um tempo posterior e assim é que, ainda hoje, podemos interpretar as obras de Mozart,  Vivaldi ou Bruckner.  Em troca, a chamada música popular, historicamente transmitida de ouvido pelas gerações, só começou a ser bem registrada graças à aparição dos discos e outras formas de gravação; mas esse registro é distinto de uma partitura.


Podemos dizer que ambos os métodos são diferentes, com suas virtudes e seus defeitos, com características próprias cada um. Se analisarmos, ambos os estilos e estratégias de composição e de trabalho, ambas têm vantagens e desvantagens. A música popular pode tentar certos trechos e frases que não se podem escrever, e são muito difíceis e complexos tanto rítmica como harmônica ou melodicamente. Não se podem transmitir com muita fidelidade, porque, embora seja através de uma gravação, não sempre se pode saber o que soa e como. Inclusive para um grupo ou banda é bem difícil saber eles mesmos o que foi que tocaram em certas gravações. A música clássica, em troca, é baseada em notações, quase como se se tratasse de um plano arquitetônico, e se pode reproduzir todas as vezes que quiser; mas, nesse caso, o "reprodutor" da música não é um botão nem um aparelho de áudio, senão as próprias pessoas. Uma sinfonia clássica se pode reproduzir infinitamente, em forma variável e dependente do estado de ânimo e várias outras condições; no entanto, uma peça popular se pode reproduzir infinitamente também, mas todas as vezes sempre igual, porque o faz uma máquina. Em certa forma, e em certas áreas, escrever a música em partituras completas é mais eficiente e fiável do que gravá-la, pois a gravação não garante capturar totalmente a música tal qual é, porque caso querer tocá-la novamente, é bem provável não poder acertar com todas as notas que a fizeram realidade. A única forma em que uma gravação pode reproduzir essa música é soando, mas excluindo novas versões e interpretações de músicos: exclui outros músicos.

Entendemos, assim, que sendo que a música clássica é escrita, talvez possamos chamá-la assim: música escrita. Funciona com papel. Em troca, a música popular é não-escrita. As duas têm suas vantagens e desvantagens, mas para o que significa uma apresentação ao vivo é mais eficiente a música escrita.

Por isso a música clássica é fundamentalmente feita num palco, ao vivo: é presencial e espacial. Porém, para a mídia funciona melhor a música popular, e daí suas distintas evoluções.



Já analisado este problema podemos saber qual é a nossa área de trabalho e por que é tão importante o concerto ao vivo, mais do que nada relativamente à música original, que é o que agora mais nos interessa. Fazendo uma analogia com o teatro vemos que é a disciplina que mais se parece à música, pela sua função cênica; tanto um como a outra têm representações, interpretações feitas por pessoas chamadas atores num caso, e no outro, músicos, e em ambos os casos tudo é baseado num texto ou numa partitura, ou seja, escrito num papel.

Porém, a situação atual da música clássica é semelhante à de um teatro onde se representassem só obras clássicas. Seguindo com a analogia, seria como se um teatro apresentasse só obras de Shakespeare, Calderón de la Barca o Luigi Pirandello, quando o que interessa é que o teatro também apresente obras novas.  


Paolo Tabilo Sagua

Por que um concerto pago?




Hoje, pensar na música e em certos contextos e lugares, significa assumir verdades entendidas como “dadas”, inquestionáveis, e às vezes tradicionais. A música chamada “clássica”, hoje em dia, em muitos países é entendida em tal forma que é aceito que se realize através de determinados canais e condutos. Frequentemente acredita-se que é verdade que a música clássica "não dá pra viver" e esta é uma sorte de "verdade" que deve ser aceita pelos estudantes, e até profissionais, que não poderiam aspirar a outra coisa nenhuma (inclusive às vezes é entendido que uma pretensão desse tipo é "ilegítima" e até reprovável do ponto de vista moral).

Em outras palavras: cobrar pela música, em muitas circunstâncias e países é mal visto, e é difícil de concretizar e sequer tentá-lo. Tudo isto repercute em forma muito óbvia na profissão e no trabalho musical, mas os que vemos isto com clareza e "obviedade" somos os músicos, pois para o resto das pessoas passa desapercebido já que não o vivem diretamente.

Naturalmente, uma profissão que não se paga é de difícil desempenho, pois o profissional afetado deverá procurar outra forma de subsistência. Habitualmente, se o destino do músico não é a pobreza ou até a miséria, é comum que se dedique a formar uma empresa desenvolvendo atividades com atitudes mais lucrativas e empresariais, em comparação ao dinheiro que poderia ganhar com a sua arte.

Existe um preconceito, amplamente aceito, e é que a música "é cara" e difícil de alcançar para muitas pessoas, e assim é que há tendência a ver só uma parte do problema: isto é, garantir que o público possa assistir. Com a melhor das intenções se procura que a música fique mais perto de todos, organizando concertos gratuitos com um fim social. Tudo isto é feito com objetivos de filantropia e altruísmo, mas o problema aparece quando começamos a considerar às pessoas carenciadas em sua faceta de músicos e artistas.

Então, semelhantemente a como num bairro pobre existem pessoas que querem ouvir música, também existem pessoas que querem fazê-la. Estas últimas, se forem se dedicar à música profissionalmente, terão certamente uma desvantagem muito séria para realizarem seu trabalho, comparativamente às pessoas provenientes de classes mais ricas. O músico que tem recursos e boa situação econômica desde o seu nascimento, pode realizar um trabalho gratuito com maior facilidade do que aquele que vem de um entorno com dificuldades de todo tipo. Pela mesma causa resulta difícil, se não impossível e até irreal, encontrar compositores ou sinfonistas nas favelas do Brasil, nas populações "callampa" do Chile, ou nas "vilas miséria" da Argentina. Não existem possibilidades para as pessoas que vivem nessas condições, e é quase uma piada de mau gosto sugerir-lhes um trabalho de compositor, e isto é porque tal ocupação não é valorizada como um trabalho, e isto subentende, para dizê-lo em forma bem simples, que esse trabalho não se paga. 

Em outros países é diferente. No caso do autor desta coluna, que mora no Chile, a situação é complexa por muitos motivos que têm a ver com a situação atual da educação, por exemplo, que se acha quase completamente privatizada. Isto gera exclusão e diferenças sociais. Pela mesma causa, quando se coloca uma proposta que envolve a ideia de "música paga", ou remunerada, é difícil para muitas pessoas não pensar em "exploração". A ideia de uma arte paga, ou de uma música com perspectivas de lucro, é imediatamente rejeitada porque provavelmente associa-se com a ideia de educação "paga" e privatizada. Igualmente, falar da necessidade de remuneração para os músicos, e para os artistas em geral, aparece como uma perspectiva extremamente mercantilista e soa quase um insulto. Consequentemte, os músicos não podem defender os seus interesses, sendo dificílimo manifestar abertamente a problemática.

Porém, a realidade do trabalho do compositor, especialmente, pois esta é a faceta mais prejudicada se bem as outras estão relacionadas, estabelece que é bem difícil viver compondo música. Diante de tudo devemos pensar assumindo o lugar do compositor: Quem é que paga a música?  Não existindo uma indústria da música propriamente como tal, não é fácil pensar numa atividade compositiva profissional na qual o público pague pelas criações. Isto é condicionado pela ideia de que "pagar a música é mercantilista e imoral", e também porque, na realidade, também não é economicamente atrativo organizar concertos deste tipo (mas esta última situação é consequência do mesmo preconceito).

Em segundo lugar devemos pensar numa alternativa lógica que se supõe, ou se pensa, que deve vir como resposta, e é a necessidade de remuneração para os compositores: são muitas as pessoas que supõem que o Estado deveria assumir a responsabilidade de pagar aos compositores, seja através de concursos, de bolsas, de fundos especiais, ou simplesmente mediante salários. Esta ideia, além de resultar financeiramente inviável, tem um problema ainda pior, e é que submete ao compositor a escrever música em função de quem avaliará teu projeto, e isto significa, nada menos, compor em clave de academicismo, ou seja, compor para o agrado e a satisfação dos gostos e tendências imperantes no momento. Significa música oficial, e consequentemente, há uma dependência grande perante as comissões, os júris e outros especialistas que aprovarão o teu projeto ou tuas composições, fato que já acontece na realidade.

Então o problema não se pode resolver unicamente através do Estado, deverá ser resolvido nalgum ponto pelo público, como tem acontecido por séculos no âmbito da música. Lembremos que grande parte da música clássica que hoje desfrutamos foi composta para um público em particular, e em muitas ocasiões foi composta para um público pensado como um negócio. A maior parte da música não se fez num contexto acadêmico: não se fez "experimentalmente", nem para uns poucos escolhidos. Fez-se pensando num público massivo, e portanto foi exposta a um veredito bastante impaciente, e também bastante instável.


Estas ideias têm muito de impopulares, pois ainda bem envolvem uma lógica que muitos reconheceriam, não são de aceitação popular e soam mal, são ofensivas para certo tipo de pudor. Mas são a maior realidade tangível, pois por exemplo, o problema dos compositores pobres é real e não tem nada de fantasia.  O compositor  proveniente de um lugar com muitas dificuldades econômicas não pode realizar sua arte com a mesma facilidade do compositor de nível econômico mais alto. Aqui entra mais um preconceito relativo ao ofício de compositor: acredita-se, por alguma razão, que todos os músicos somos professores.  Ou seja, se não podemos viver fazendo música, podemos ensiná-la. Mas este raciocínio é igual a um agricultor que não podendo cultivar batatas pode viver ensinando a cultivá-las. É uma lógica circular um pouco inútil, pois se um músico não pode fazer música, mas sim pode dar aulas de música para um estudante que logo será músico, e se este depois dará aulas de música para alguém que também não poderá ser músico, e mais outro estudante aprendeu logo deste músico mas só poderá ensinar, podemos perguntar quem foi que tocou música durante todo esse tempo. Evidentemente a música se aprende e ensina para ser tocada, ou caso contrário, carece de todo sentido e resulta quase uma zombaria pensar de outra forma.

Todos estes raciocínios fazem do trabalho musical, entendido como profissão e não como um  hobby ou um passatempo aristocrático, algo extremamente difícil do ponto de vista prático, pois subentende viver dele, e também do lado estético, pois estas condições influenciam a liberdade que o compositor pode ter, e nos dá neste tempo uma arte quase, e exclusivamente, monocorde, e muito restrita em liberdades estéticas, econômicas e profissionais para quanto nos pode oferecer.  Fora isso, devemos tomar conta de mais uma coisa, e é que os compositores, atualmente, para se desempenhar e trabalhar precisam de um título acadêmico: surpreenderia ao público saber que a maior parte dos grandes compositores do passado não estudaram nem se "formaram" na universidade. Mozart, Bach, Beethoven, Haendel, Vivaldi, Schubert, Haydn, Schumann, Mendelssohn, Rossini, Rimsky Korsakov - quem, dito seja de passagem, escreveu seu célebre Tratado de Orquestração, foi um típico autodidata - ... e uma longa lista de maestros da música, aprenderam com os seus pais, com mestres e professores, recebendo aulas e, fundamentalmente, com a prática.  A composição é e tem sido tradicionalmente uma profissão que se parece à marcenaria ou a labor do ebanista, e se relaciona com aprender fazendo e compondo, onde se vai conhecendo e entendendo melhor a composição na medida em que mais se a pratica. Portanto, muitos grandes músicos do passado tiveram carências quanto a sua formação, e nem sequer assistiram a cursos regulares: o autodidatismo é uma constante na história da música. Isto não é consequência do descuido, senão da própria natureza compositiva.

Rimsky Korsakov

Se bem a música necessita do mestre e as academias, universidades e institutos, porque é baseada também na teoria e na criação de pensamento aplicado a um desenvolvimento, estudo e prática, e houve compositores que foram grandes mestres e pedagogos, é necessário considerar não obstante que a profissão em si de compositor não subentende, necessariamente, uma relação com a capacidade para ensinar. Se ainda acrescentamos o fato de que nem todos os compositores têm nem podem ter um título acadêmico, vemos que o panorama para muitos é sombrio, e difícil. 

Segundo o expressado em artigos anteriores acerca da importância ao vivo da música clássica, da sua natureza cênica, de quanto importa e é essencial uma relação com os concertos presenciais, considero que podemos voltar à nossa pergunta, que é se por acaso um músico numa favela ou numa população de bairro pobre pode ser compositor de música clássica. Se na hora de falar da função social da música, tão repetidamente marcada em nossos dias, pensamos só no público receptor, estamos deixando a um lado o emissor, e assim criaremos outro tipo de dependência: as pessoas da sociedade pobre serão receptores da criação musical da classe rica, e por este caminho não haverá uma completa realização pessoal, artística nem econômica para muitas pessoas, e também não haverá uma liberdade cultural.  


Paolo Tabilo Sagua

A MÚSICA E O FIM DA INTERNET.

A Internet une e separa, e isto acontece talvez porque a rede e a tecnologia estão se tornando circulares, já que não são meios para um fim, senão que são um fim em si mesmas.

 


Hoje em dia, falar em modernidade equivale a falar da internet. Talvez quem está lendo agora este artigo o encontrou numa página da web, por não dizer que é muito improvável que o pudesse ler se não existisse a rede. A rede tem facilitado as coisas, permite algumas outras, mas nalgum sentido complicou tudo e a música e as artes não são a exceção.

Que quer dizer tudo isto? As novas tecnologias, além de soluções e vantagens, apresentam um problema em si mesmas, e não adianta muito negá-lo. Atualmente passamos a maior parte do dia escravos de uma tela de computador, e até se quisermos só trabalhar e deixar a um lado facebook e todas as redes sociais, continuamos sendo dependentes de um aparelho que esgota, enfraquece a vista e nos desconecta das outras pessoas.

A Internet une e separa, e isto acontece talvez porque a rede e a tecnologia estão se tornando circulares, já que não são meios para um fim, senão um fim em si mesmas.

No terreno das artes se escuta falar cada vez mais, ou se lê, acerca dos espetáculos multi-mídia, dos meios audiovisuais, dos sistemas de som, e distintos elementos. Estes, no caso da música, à diferença dos tempos passados,  já não são do tipo analógico senão digitais, o que significa que o som que se ouve não é real: é uma ilusão formada de pontos ou partículas sonoras, que juntas imitam a impressão de timbres, sons e ruídos. Não são como os antigos discos ou cassetes, que constituíam um som autêntico captado em forma direta, e tinham outra textura e características, conceitos estes que um músico entende bem, pois percebe auditivamente um fato físico muito complicado de detalhar aqui, mas faz que hoje muitos melômanos, até jovens, prestem atenção aos velhos discos de vinil achando que o som é mais natural.

Mas a tecnologia está se tornando autorreferente em forma irresistível, e por isso podemos falar aqui um pouco da música e sua situação atual. A música está deixando de ser direta. Se toca cada vez menos para um público presente, e se grava cada vez mais – se gravada, pois está se começando a usar diversos programas informáticos -  o que faz que falar de música “em direto”, ao vivo, soe antiquado e até retardatário.

Talvez seja essa uma das características mais desagradáveis da nova tecnologia: está adquirindo um caráter sagrado que não admite crítica, impermeável a qualquer outro enfoque ou ponto de vista. Tudo parece maravilhoso, fantástico, e tudo o que permite fazer é sintoma de “modernidade”. Também é provável que a tecnologia atual não se pareça à dos tempos passados, como acontecia com o rádio, ou os primeiros computadores.  Muitas vezes cita-se o ditado “todo tempo passado foi melhor”, aludindo que a nostalgia é coisa própria de todas as gerações. Porém, os avanços modernos são diferentes dos antigos, porque são muito mais poderosos e disjuntivos, e ainda não nos acostumamos às suas consequências. Tudo isto faz pensar em que a música em direto e os  concertos ao vivo são coisas que soam antiquadas, ou de gente negada aos avanços. Algo parecido aconteceu com a radiofonia: foi dito que a era da música ao vivo havia chegado ao final da sua existência, e quem pensasse o contrário era ficava no passado. Também o cinema terminaria com o teatro, e a televisão terminaria com o cinema... Mas nada disso aconteceu.

Então, a pergunta poderia ser: como se faz para tocar uma sinfonia com sopros, bronzes, timbais e cordas? Será que existe alguma outra forma que não seja, simplesmente, tocando-a?

Evidentemente há um problema com a percepção da música, e o problema passa por um tema de relacionamento. As pessoas necessitam se juntar, cumprimentar-se, se olhar no rosto, e juntas escutar um concerto. A vida real é assim! Isto não significa que todos  tenham que se dar bem ou serem amigos, senão que a vida sempre tem sido sem um computador por meio. Portanto é preciso colocar a tecnologia no lugar que lhe corresponde.

Da outra parte, os instrumentos musicais também são tecnologia, os timbais, as trompas ou os violoncelos são fruto de avanços técnicos. Não têm uma carga de ingenuidades românticas, e mesmo havendo muito sentimento em torno deles, não são artefatos atrasados e óbvios, senão que têm inovação e inteligência acrescentadas.

Após toda esta longa introdução, poderíamos nos perguntar: O que podemos fazer os músicos atuais pela humanidade? A resposta, quiçá, é que a música ao vivo pode tirar um pouco às pessoas do computador, e levá-las a fazer contato com experiências reais. Em lugar de ser a internet o “reprodutor” da música, é melhor que a internet seja, simplesmente, una via através da qual músicos e público se ponham em contato para organizar concertos presenciais, reais.

A internet teria assim até uma utilidade maior, porque seria um meio e não um fim. Poderia servir para organizar concertos ao vivo, em lugar de, como acontece atualmente, fazer soar a música através de uma tela.

Daí, o que aparecia como uma desvantagem e um motivo de vergonha, seria em realidade uma vantagem e uma possibilidade futurista de usar a música como arte cênica que utiliza um espaço físico para criar uma experiência sonora e espacial. Os músicos clássicos estamos bem mais treinados nisto que os modernos, porque a nossa técnica se desenvolveu durante séculos quando não havia eletricidade nem aparelhos de áudio: existia só a realidade, e havia que dar-lhe uma forma, para bem ou para mal, com seus problemas e virtudes. Os músicos clássicos, compositores ou intérpretes igualmente, também temos uma vantagem econômica porque podemos fazer música sem pagar a conta da luz. Nenhum instrumento do repertório clássico necessita da eletricidade. Eis então que os nossos “custos”, na era da modernidade em que só importa a economia, podem ser até mais baixos que para o resto.

Estas vantagens e potencialidades merecem ser exploradas como oportunidades e riquezas, não como defeitos a serem evitados. Evidentemente pode haver instrumentos que requiram algum tipo de programa ou conexão elétrica, mas, em geral, quase todos são  “umplugged”. Não necessitamos de uma “atualizaçao”, estamos atualizados. O problema é que necessitamos renovar a nossa linguagem e o nosso relacionamento com o público.

E podemos pesquisar, é claro, novos timbres e instrumentos. Mas, fora isso, estamos  totalmente vigentes e nossa forma de fazer música tem muitas vantagens, inclusive sobre o resto.

Desta forma, os intérpretes e os compositores constituem um enorme potencial, uma máquina preparada para fazer música que não se pode desaproveitar. Ativá-la faria não somente mais fácil a criação e a interpretação, senão que seria um motor econômico para os músicos, e um estímulo para a atividade cultural em geral. 



Paolo Tabilo Sagua

Pode a orquestra ser uma empresa?

Sim, mas não uma empresa convencional.

 

 

A crise econômica que hoje sofre o mundo afeta gravemente o âmbito da cultura, um fato que ninguém põe em discussão. No caso da música, esta realidade obriga a repensar vários aspectos da indústria dos espetáculos de música clássica.


Mas a crise econômica afeta somente a cultura e a arte? Evidentemente não, e então devemos assumir que aquele preconceito que quer nos "chamar à realidade" porque "a arte não dá pra viver", ironicamente pode ser válido hoje para milhares de profissões de toda índole, no mundo inteiro. Esta é a realidade. Y ela é a que obriga a revisar objetivamente muitas estruturas, incluindo as que até hoje sustentam as profissões artísticas. Há tradições insustentáveis e preconceitos que será preciso atacar. E é aí, justamente aí, onde aparecem algumas interrogantes que inquietam a muitos músicos profissionais e, com maior razão, aos jovens que têm a ilusão de seguir una carreira profissional.


Na série de três artigos aqui publicados por Paolo Tabilo Sagua estas inquietudes eram analisadas em profundidade, deixando algumas interrogantes dignas de atenção: Até onde é verdade que a música clássica não pode dar para viver?  Qual é a diferença real entre a música clássica e a música popular?  Que papel desempenha internet na difusão da música clássica?

O caso particular da internet se pode resumir num ponto decisivo: a rede contribui muito a difundir a música clássica, mas é grátis e lhe resta público aos concertos ao vivo, e isto pode terminar sendo contraproducente para que os músicos, incluindo os compositores, possam viver da sua profissão. Em consequência, seria necessário revisar o conceito empresarial que sustenta hoje às orquestras e os concertos ao vivo. Uma orquestra pode ser una empresa, mas una empresa de características adequadas à época presente, para que seja rentável.

¿Por que revitalizar o concerto ao vivo?

Digamos sem demora que a possibilidade de fazer gravações é, para a música, o que a invenção de Gutemberg significou para a literatura: não é só uni meio massivo de difusão, também é de perdurabilidade. Porém, o espetáculo musical em si é insubstituível. É o contato direto com o público,  há uma fusão emocional que jamais se produz de outra forma. Esta emoção é até contagiosa entre as mesmas pessoas que integram o público presente num concerto. E é mais: há una enorme diferença entre o som diretamente produzido pelos instrumentos em comparação com o som gravado, embora seja reproduzido pelos melhores aparelhos eletrônicos atuais e as melhores técnicas de gravação.



E aqui precisamos fazer uma distinção sumamente importante entre a música popular atual e a música clássica: num concerto de música clássica os instrumentos são capazes de fazer se escutar por si sós, pois são instrumentos acústicos; no entanto, na música popular sem exceção, um concerto necessita diversos meios eletrônicos que incluem amplificadores de som de alta potência e fidelidade. Ou seja, a intervenção de tais equipamentos faz que para a música popular não haja diferença auditiva alguma entre um concerto ao vivo ou a reprodução de una boa toma de som num estúdio de gravação. Esta diferença é muito importante para o público da música clássica, que sempre dirá que nada se compara com estar presente num concerto e poder escutar una orquestra diretamente.

Sem dúvida isto vai más longe do que colocar em conflito dois gêneros musicais. Tampouco se trata da conveniência maior ou menor em utilizar a tecnologia, como se o só fato de nãonecessitá-la como algo imprescindível para fazer música marcasse una distinção entre o antigo e o moderno, com conotações saudosas. Se trata, nada menos, que de restrições econômicas para manter vivo um gênero musical que é patrimônio da humanidade. Não manter vivo esse patrimônio seria una redução progressiva de una experiência emocional y auditiva particular, sem motivo nenhum para se perder, exceto por motivos econômicos.

Por isso é necessário valorizar o concerto ao vivo, e que não seja gratuito, como algo vital, de vida ou morte para a música clássica.

¿Qual seria a solução?

Quiçá fizesse falta, em primer término, uma mudança de mentalidade dos próprios músicos. Na hora de distribuir as recompensas, qual deles será o mais importante de todos? O compositor? O regente? O primeiro violinista? O solista? O modesto percusionista que possivelmente esteja presente todo o tempo, esperando para participar com uns poucos toques de triângulo, ou algum redobre de tambor que durará uns poucos segundos? Quem mais? Um momento, pense-se bem: Sem o compositor a música não existe, mas sem os intérpretes é impossível que soe... Devem estar presentes todos os intérpretes que o compositor pede na partitura. Todos: desde o regente até aquele modesto percusionista.

Si nos situarmos nesse plano de igualdade, vamos direito a una ideia quiçá revolucionária: a orquestra pode ser una empresa onde deve haver equiparidade no reparto de cargas e recompensas.  Numa palavra só: todos seriam igualmente importantes num enfoque empresarial, de modo tal que o reparto das despesas e o lucro seja dividido em partes iguais incluindo,  naturalmente, ao compositor.

Isto significa enfatizar a cooperação e não a concorrência. Por exemplo, caso ter um solista, este deve entender o papel que todos desempenham num concerto, prescindindo de considerar quem toca muito ou pouco durante o concerto. Claro, um pianista, por exemplo, diria que não tem por que se conformar cobrando igual que o timbaleiro, mas... que faça a prova de começar a tocar o Concerto para piano e orquestra de Grieg, sem a intervenção inicial do timbal!

Vejamos isto mais de perto.

Talvez a princípio pareça que o enfoque de dividir o lucro em forma igualitária não é novidade, pois têm existido e existem conjuntos instrumentais que praticaram esta política. Não obstante, não se trata do mesmo. Tais conjuntos têm por norma estabelecer um cachê e os gastos correm por conta dos organizadores. Isto pode elevar consideravelmente o preço dos concertos fazendo que sejam muito mais caros do que poderiam ser.

E este é um problema maior quando se trata de orquestras sinfônicas, ou grandes espetáculos como uma ópera o um ballet. Em troca, se as fontes de financiamento do espetáculo vão diretas a os compositores e intérpretes, sem intermediários, o custo se reduz, aumenta a margem de lucro, e o valor dos ingressos para assistir aos concertos se pode ajustar melhor às possibilidades dos diferentes públicos aos que o espetáculo quiser se apresentar.

¿Como se viabiliza una ideia como esta?

É preciso não cair numa disjuntiva entre o gratuito y o pago. Seria melhor uma complementaridade, pois pode haver concertos livres ao lado de concertos pagos. Muitas personas acham nisto uma dicotomia, una oposição. Porém, um concerto gratuito pode sê-lo para o público, mas não necessariamente para os compositores e intérpretes, pois não se deve seguir incentivando o preconceito de que "a música clássica não dá para viver". Do ponto de vista empresarial, um concerto gratuito se pode considerar como una promoção, ou seja, um investimento com lucro futuro calculado. Em outras palavras, seria atrair novo público para a música clássica, um público que quiçá não se arriscaria a pagar ingressos sem ter a segurança de que vai gostar do espetáculo.. Mas, é claro, não é viável uma quantidade exorbitante de concertos grátis sob pretexto de "promoção cultural", pois isso é  suicida.

Evidentemente aqui não se pode, por razões de espaço, descrever as estratégias de marketing para este tipo de empreendimentos em curto e longo prazo. Com certteza, internet pode desempenhar um papel muito importante em termos publicitários, por causa da enorme projeção que tem para qualquer anunciante de um evento. Assim, a rede passaria a ter outros fins para atrair mais público. Não se  pode esquecer que é um meio poderoso de difusão, mas até agora vem sendo usado  - digamos isto cruamente - para que o grande público tenha acesso à música em forma gratuita. A diminuição pronunciada na venda de CDs y DVDs musicais é um fato aplastante que invalida qualquer argumento a favor de "mais música para todos", porque se o músico tem contas a pagar (igual que todo o mundo, ¿não é asssim?), terminará abandonando a profissão e haverá menos música para todos.

Também não podemos esquecer que existem diferenças importantes entre os países do chamado Primeiro Mundo e o resto de países em termos econômicos, mas também culturais. Este é um fator a ter muito em consideração. Nos países latino-americanos, por exemplo, é frequente que associar a palavra "lucro" com a cultura artística seja quase um insulto.

Outro fator, igualmente importante, é que quando se aposta diretamente ao público como fonte de rentabilidade para una empresa, é preciso decidir entre dois critérios (aplicáveis em qualquer tipo de empresa): produção massiva de baixo preço e qualidade medíocre, ou, ao invés, produção especializada a maiores preços e melhor qualidade. Transladando esta oposição à música clássica, o problema aparece na escolha do repertório e não tanto na qualidade dos intérpretes. Tem-se criticado muito que o repertório para as massas de melômanos seja de autores do século XIX e, quando muito, até a primeira metade do século XX com nomes muito específicos dentro do neoclassicismo, neorromantismo e impressionismo. Esta visão estreita exclui bastante a música barroca, e ainda mais, a  medieval e renascentista... sem falar da "contemporânea". Se prejulga assim a "qualidade" do compositor respeito a como a apreciará o público. ¿Por quê? A resposta nos levaria longe do tema, mas a verdade é que muitos compositores atuais ficam assim fora, e se tivessem talento (ou ¿por que não? genialidade), irão direto para o anonimato eterno por falta de oportunidade.

Então, se quisermos que o empreendimento aponte para objetivos de qualidade cultural, deverá ter pluralidade de pontos de vista y opções estéticas, ser aberto a todo estilo, incluindo o atonalismo, minimalismo, neotonalismo, e qualquer "ismo" por vir. É muito importante para que seja neutro desde um ponto de vista musical e estético. Finalmente o público, que é o juiz supremo - embora haja quem não concordar - será o que decidirá o futuro.


Los músicos têm agora a palavra. Como dizíamos no início, há tradições insustentáveis e preconceitos que será preciso atacar.


Gustavo Britos Zunín