17 de jun. de 2014

Por que um concerto pago?




Hoje, pensar na música e em certos contextos e lugares, significa assumir verdades entendidas como “dadas”, inquestionáveis, e às vezes tradicionais. A música chamada “clássica”, hoje em dia, em muitos países é entendida em tal forma que é aceito que se realize através de determinados canais e condutos. Frequentemente acredita-se que é verdade que a música clássica "não dá pra viver" e esta é uma sorte de "verdade" que deve ser aceita pelos estudantes, e até profissionais, que não poderiam aspirar a outra coisa nenhuma (inclusive às vezes é entendido que uma pretensão desse tipo é "ilegítima" e até reprovável do ponto de vista moral).

Em outras palavras: cobrar pela música, em muitas circunstâncias e países é mal visto, e é difícil de concretizar e sequer tentá-lo. Tudo isto repercute em forma muito óbvia na profissão e no trabalho musical, mas os que vemos isto com clareza e "obviedade" somos os músicos, pois para o resto das pessoas passa desapercebido já que não o vivem diretamente.

Naturalmente, uma profissão que não se paga é de difícil desempenho, pois o profissional afetado deverá procurar outra forma de subsistência. Habitualmente, se o destino do músico não é a pobreza ou até a miséria, é comum que se dedique a formar uma empresa desenvolvendo atividades com atitudes mais lucrativas e empresariais, em comparação ao dinheiro que poderia ganhar com a sua arte.

Existe um preconceito, amplamente aceito, e é que a música "é cara" e difícil de alcançar para muitas pessoas, e assim é que há tendência a ver só uma parte do problema: isto é, garantir que o público possa assistir. Com a melhor das intenções se procura que a música fique mais perto de todos, organizando concertos gratuitos com um fim social. Tudo isto é feito com objetivos de filantropia e altruísmo, mas o problema aparece quando começamos a considerar às pessoas carenciadas em sua faceta de músicos e artistas.

Então, semelhantemente a como num bairro pobre existem pessoas que querem ouvir música, também existem pessoas que querem fazê-la. Estas últimas, se forem se dedicar à música profissionalmente, terão certamente uma desvantagem muito séria para realizarem seu trabalho, comparativamente às pessoas provenientes de classes mais ricas. O músico que tem recursos e boa situação econômica desde o seu nascimento, pode realizar um trabalho gratuito com maior facilidade do que aquele que vem de um entorno com dificuldades de todo tipo. Pela mesma causa resulta difícil, se não impossível e até irreal, encontrar compositores ou sinfonistas nas favelas do Brasil, nas populações "callampa" do Chile, ou nas "vilas miséria" da Argentina. Não existem possibilidades para as pessoas que vivem nessas condições, e é quase uma piada de mau gosto sugerir-lhes um trabalho de compositor, e isto é porque tal ocupação não é valorizada como um trabalho, e isto subentende, para dizê-lo em forma bem simples, que esse trabalho não se paga. 

Em outros países é diferente. No caso do autor desta coluna, que mora no Chile, a situação é complexa por muitos motivos que têm a ver com a situação atual da educação, por exemplo, que se acha quase completamente privatizada. Isto gera exclusão e diferenças sociais. Pela mesma causa, quando se coloca uma proposta que envolve a ideia de "música paga", ou remunerada, é difícil para muitas pessoas não pensar em "exploração". A ideia de uma arte paga, ou de uma música com perspectivas de lucro, é imediatamente rejeitada porque provavelmente associa-se com a ideia de educação "paga" e privatizada. Igualmente, falar da necessidade de remuneração para os músicos, e para os artistas em geral, aparece como uma perspectiva extremamente mercantilista e soa quase um insulto. Consequentemte, os músicos não podem defender os seus interesses, sendo dificílimo manifestar abertamente a problemática.

Porém, a realidade do trabalho do compositor, especialmente, pois esta é a faceta mais prejudicada se bem as outras estão relacionadas, estabelece que é bem difícil viver compondo música. Diante de tudo devemos pensar assumindo o lugar do compositor: Quem é que paga a música?  Não existindo uma indústria da música propriamente como tal, não é fácil pensar numa atividade compositiva profissional na qual o público pague pelas criações. Isto é condicionado pela ideia de que "pagar a música é mercantilista e imoral", e também porque, na realidade, também não é economicamente atrativo organizar concertos deste tipo (mas esta última situação é consequência do mesmo preconceito).

Em segundo lugar devemos pensar numa alternativa lógica que se supõe, ou se pensa, que deve vir como resposta, e é a necessidade de remuneração para os compositores: são muitas as pessoas que supõem que o Estado deveria assumir a responsabilidade de pagar aos compositores, seja através de concursos, de bolsas, de fundos especiais, ou simplesmente mediante salários. Esta ideia, além de resultar financeiramente inviável, tem um problema ainda pior, e é que submete ao compositor a escrever música em função de quem avaliará teu projeto, e isto significa, nada menos, compor em clave de academicismo, ou seja, compor para o agrado e a satisfação dos gostos e tendências imperantes no momento. Significa música oficial, e consequentemente, há uma dependência grande perante as comissões, os júris e outros especialistas que aprovarão o teu projeto ou tuas composições, fato que já acontece na realidade.

Então o problema não se pode resolver unicamente através do Estado, deverá ser resolvido nalgum ponto pelo público, como tem acontecido por séculos no âmbito da música. Lembremos que grande parte da música clássica que hoje desfrutamos foi composta para um público em particular, e em muitas ocasiões foi composta para um público pensado como um negócio. A maior parte da música não se fez num contexto acadêmico: não se fez "experimentalmente", nem para uns poucos escolhidos. Fez-se pensando num público massivo, e portanto foi exposta a um veredito bastante impaciente, e também bastante instável.


Estas ideias têm muito de impopulares, pois ainda bem envolvem uma lógica que muitos reconheceriam, não são de aceitação popular e soam mal, são ofensivas para certo tipo de pudor. Mas são a maior realidade tangível, pois por exemplo, o problema dos compositores pobres é real e não tem nada de fantasia.  O compositor  proveniente de um lugar com muitas dificuldades econômicas não pode realizar sua arte com a mesma facilidade do compositor de nível econômico mais alto. Aqui entra mais um preconceito relativo ao ofício de compositor: acredita-se, por alguma razão, que todos os músicos somos professores.  Ou seja, se não podemos viver fazendo música, podemos ensiná-la. Mas este raciocínio é igual a um agricultor que não podendo cultivar batatas pode viver ensinando a cultivá-las. É uma lógica circular um pouco inútil, pois se um músico não pode fazer música, mas sim pode dar aulas de música para um estudante que logo será músico, e se este depois dará aulas de música para alguém que também não poderá ser músico, e mais outro estudante aprendeu logo deste músico mas só poderá ensinar, podemos perguntar quem foi que tocou música durante todo esse tempo. Evidentemente a música se aprende e ensina para ser tocada, ou caso contrário, carece de todo sentido e resulta quase uma zombaria pensar de outra forma.

Todos estes raciocínios fazem do trabalho musical, entendido como profissão e não como um  hobby ou um passatempo aristocrático, algo extremamente difícil do ponto de vista prático, pois subentende viver dele, e também do lado estético, pois estas condições influenciam a liberdade que o compositor pode ter, e nos dá neste tempo uma arte quase, e exclusivamente, monocorde, e muito restrita em liberdades estéticas, econômicas e profissionais para quanto nos pode oferecer.  Fora isso, devemos tomar conta de mais uma coisa, e é que os compositores, atualmente, para se desempenhar e trabalhar precisam de um título acadêmico: surpreenderia ao público saber que a maior parte dos grandes compositores do passado não estudaram nem se "formaram" na universidade. Mozart, Bach, Beethoven, Haendel, Vivaldi, Schubert, Haydn, Schumann, Mendelssohn, Rossini, Rimsky Korsakov - quem, dito seja de passagem, escreveu seu célebre Tratado de Orquestração, foi um típico autodidata - ... e uma longa lista de maestros da música, aprenderam com os seus pais, com mestres e professores, recebendo aulas e, fundamentalmente, com a prática.  A composição é e tem sido tradicionalmente uma profissão que se parece à marcenaria ou a labor do ebanista, e se relaciona com aprender fazendo e compondo, onde se vai conhecendo e entendendo melhor a composição na medida em que mais se a pratica. Portanto, muitos grandes músicos do passado tiveram carências quanto a sua formação, e nem sequer assistiram a cursos regulares: o autodidatismo é uma constante na história da música. Isto não é consequência do descuido, senão da própria natureza compositiva.

Rimsky Korsakov

Se bem a música necessita do mestre e as academias, universidades e institutos, porque é baseada também na teoria e na criação de pensamento aplicado a um desenvolvimento, estudo e prática, e houve compositores que foram grandes mestres e pedagogos, é necessário considerar não obstante que a profissão em si de compositor não subentende, necessariamente, uma relação com a capacidade para ensinar. Se ainda acrescentamos o fato de que nem todos os compositores têm nem podem ter um título acadêmico, vemos que o panorama para muitos é sombrio, e difícil. 

Segundo o expressado em artigos anteriores acerca da importância ao vivo da música clássica, da sua natureza cênica, de quanto importa e é essencial uma relação com os concertos presenciais, considero que podemos voltar à nossa pergunta, que é se por acaso um músico numa favela ou numa população de bairro pobre pode ser compositor de música clássica. Se na hora de falar da função social da música, tão repetidamente marcada em nossos dias, pensamos só no público receptor, estamos deixando a um lado o emissor, e assim criaremos outro tipo de dependência: as pessoas da sociedade pobre serão receptores da criação musical da classe rica, e por este caminho não haverá uma completa realização pessoal, artística nem econômica para muitas pessoas, e também não haverá uma liberdade cultural.  


Paolo Tabilo Sagua

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